Não é de hoje que Dom João Henrique de Orleans e Bragança – vulgo “Dom Joãozinho” – lança mão de sua penetração em certos círculos políticos e culturais para se apresentar, perante a opinião pública, com ares de democrata abnegado e suprapartidário. Essa velha cantilena, a bem da verdade, vem desde os tempos do plebiscito de 1993.
A Gazeta do Povo de 08 do corrente¹ publicou extensa entrevista com ele, em que, mais uma vez, o badalado príncipe despeja a sua retórica moderada na aparência, mas desagregadora no fundo. Desta vez, porém, mais afoita em seu afã usurpador dos direitos dinásticos do Príncipe Dom Luiz de Orleans e Bragança, chefe da Casa Imperial do Brasil e legítimo herdeiro do Trono brasileiro. Vejamos o que diz: “Em qualquer democracia a lei é feita através do parlamento. A família real não tem o direito de dizer quem será o rei. A família não tem esse poder nem esse direito de indicar. O rei seria escolhido pela população através de seus representantes legais no Congresso. Não existe obrigatoriedade de ser um Orleans e Bragança”.
Trata-se, obviamente, de um acinte ao direto dinástico, cuja força moral não reside nas disposições parlamentares, por obedecer a fatores históricos de continuidade e estabilidade, independentes das composições políticas deste ou daquele momento. Convém dizer que somente se se apartar por inteiro dos embates partidários, inclusive na questão da sucessão real, poderá a Coroa desempenhar a contento o seu relevante papel de moderador da nação.
Além de passar por cima da indispensável questão da legitimidade monárquica, na qual repousa a verdadeira autoridade do ideário de restauração da monarquia, “Dom Joãozinho” alega motivações absurdas e preconceituosas contra a Casa Imperial: “(…) um problema que existe é que dois membros do ramo de Vassouras (Dom Luiz e Dom Bertrand) são ligados a uma instituição de direita. Eles estão fora de qualquer postura aceita para uma família real. Eu sou suprapartidário. Já me pediram para eu me candidatar para cargos, o governador (do Rio de Janeiro) Brizola me convidou para entrar para o governo, trinta anos atrás. Mas eu sempre digo: eu faço política, mas não posso entrar em política partidária. É a premissa básica das famílias reais. Nos eventos políticos e culturais que faço na minha casa, recebo de frei Betto a Fernando Henrique Cardoso.”
Cabe, antes de tudo, ressaltar que Dom Luiz e Dom Bertrand (alvos das críticas) jamais fizeram política partidária – “a premissa básica das famílias reais”, como diz “Dom Joãozinho”. Também eles participam de eventos públicos com pessoas das mais diversas tendências partidárias.
Por outro lado, a superioridade da monarquia parlamentar reside, sem dúvida, na independência e imparcialidade do rei – mas apenas no que toca ao seu papel institucional. Pode o rei, e deve muitas vezes, endossar determinado discurso político, desde que em consonância com a índole de seu povo e as tradições pátrias e sem quaisquer propósitos de imiscuir-se no jogo partidário, a não ser, naturalmente, para alertar quanto à pertinência ou não de determinada reforma proposta pelo gabinete.² Desse modo, não haveria maiores problemas em ser Dom Luiz, clara ou veladamente, de “direita”.
No trecho acima, o príncipe surfista acaba falando demais e se entrega – embora ressaltando a posição suprapartidária do monarca, apresentando-se ele próprio, Dom João, como tal – ao deixar entrever sua condição de homem de centro-esquerda, aliás fato notório para todos. Se, por um lado, Dom Luiz não teria condições de reinar por ser de “direita”, não se entende, nessa mal costurada argumentação, por que o teria “Dom Joãozinho”, sendo de esquerda.
Mas o que de pior disse “Dom Joãozinho”, com o seu costumeiro ar de democrata infalível, foi que “a família real não tem o direito de dizer quem será o rei”. Fosse ele um troca-tintas qualquer, a estultice encerrada na afirmação passaria por pomposa afirmação de um palpiteiro. Mas não o é. O príncipe surfista, de fato, tem razão: a Família Imperial não tem o direito de escolher quem será o rei. A escolha recai sobre um elemento sábio por definição: a hereditariedade, em que se assenta o direito dinástico. Dom Luiz é o herdeiro por ser o primogênito de Dom Pedro Henrique (1909 – 1981), que, por sua vez, tornou-se o herdeiro pela condição de primognito do Príncipe Dom Luiz Maria (1878 – 1920) – cognominado, com justeza, de “Príncipe Perfeito” –, este tendo se feito herdeiro do Trono com a renúncia de seu irmão mais velho, Dom Pedro de Alcântara (1875 – 1940), em 1908. Ambos, Dom Luiz Maria e Dom Pedro de Alcântara, eram filhos da Princesa Isabel e do Conde d’Eu.
Não tem o menor cabimento, pois, o que disse “Dom Joãozinho”. A menos que estivesse, quem sabe, advogando em causa própria. Histórico não lhe falta. O seu tio, Dom Pedro Gastão (1913 – 2007), o segundo filho de Dom Pedro de Alcântara, que renunciara em 1908, quando voltou ao Brasil do exílio imposto à Família Imperial pela República, começou a portar-se como legítimo herdeiro e autoridade maior do movimento monárquico brasileiro, não tanto de maneira ostensiva, mas sutilmente, a despeito da presença marcante de seu primo, o Príncipe Dom Pedro Henrique, chefe da Casa Imperial. Surgiram daí os assim chamados Ramo de Vassouras, representado por Dom Pedro Henrique, e o Ramo de Petrópolis, encabeçado por Dom Gastão.
Como bem o demonstra o historiador e genealogista Armando Alexandre dos Santos em seu brilhante livro A legitimidade monárquica no Brasil,³ é improcedente considerar-se a existência de dois ramos distintos, cada qual com pretensões ao Trono brasileiro. O ramo brasileiro da Casa de Bragança nasceu quando o grande estadista que foi Dom João VI, intimado a voltar a Portugal pelas Cortes de Lisboa, recomendou ao seu herdeiro ficasse no Brasil como regente, eventualmente tornando-se rei “antes que um aventureiro o faça”. Assim foi feito: nascia o Brasil independente, com instituições adaptadas ao meio e às circunstâncias, graças aos méritos, entre outros, do Marquês de Caravelas, relator da Constituição de 1824, em razão do qual foi introduzido, na lei maior da nova nação, o instituto do Poder Moderador, teorizado por Benjamin Constant. O príncipe-regente tornou-se Dom Pedro I, “Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil”, sendo substituído, após o período tormentoso da Regência, pelo seu filho, coroado, em 1840, com o nome de Dom Pedro II, que viria a ser deposto pela quartelada de 1889. No exílio, o primogênito da Princesa Isabel, Dom Pedro de Alcântara, houve por bem renunciar aos seus direitos dinásticos para se casar com uma condessa tcheca, decerto de linhagem ilustre, mas não principesca, em contraste com as tradições dos monarcas da Casa de Bragança. É natural que o herdeiro do Trono, para desempenhar com maior descortino a alta missão de Chefe de Estado, tenha como esposa alguém que recebera a mesma educação.[4]
A Princesa Isabel temia que, abrindo-se semelhante precedente, em duas ou três gerações a Família Imperial brasileira perdesse de vista a sua missão histórica. Somente a má-fé dos de mentalidade igualitária[5] – a exemplo de tantos monarquistas de hoje – para enxergar nessa orientação, que tem como objetivo o interesse maior da nação, um caráter discriminatório. Como destacado por um dos grandes doutrinadores do regime monárquico, António Sardinha, o rei nada mais é que o Procurador do Povo, efetivo garantidor das liberdades públicas e privadas.[6]
Renunciou, pois, Dom Pedro de Alcântara, em seu nome e em nome de todos os seus futuros descendentes, a quaisquer direitos sobre o Trono brasileiro, vindo a integrar a linha sucessória o seu irmão Dom Luiz, que, com a morte da Princesa Isabel, assumiu a chefia da Casa Imperial. Foi mantido, incólume, o direito dinástico. A carta-renúncia de Dom Pedro de Alcântara, ato jurídico perfeito e acabado, pode facilmente ser encontrada na internet. Na abalizada biografia que escreveu sobre Dom Pedro Henrique,[7] o prof. Armando Alexandre dos Santos relata como a postura pouco recomendável de Dom Gastão, cindindo quase que irrevogavelmente a Família Imperial, trouxera desgostos infindáveis ao legítimo herdeiro, decerto sentindo-se traído pelo primo, com quem convivera no exílio.
Também é importante ressaltar que a Constituição imperial de 1824 persiste como documento político e jurídico do qual os monarquistas brasileiros não podem se afastar. A Carta é taxativa no considerar que somente “extintas as linhas dos descendentes legítimos do Senhor D. Pedro I, ainda em vida do último descendente, e durante o seu Império, escolherá a Assembleia Geral a nova Dinastia.” (art. 118, Capítulo IV – Da Sucessão do Império)[8], o que só reforça a legitimidade dos Príncipes Dom Luiz, Dom Bertrand e Dom Antônio.
Dom João Henrique insiste em seguir uma conduta perigosa, moralmente incompatível com os ideais que diz defender e em tudo contrário aos exemplos de dignidade, benemerência e heroísmo da Casa de Bragança. Perplexos, muitos brasileiros que veem no ideal monárquico – tendo como eixo central a legitimidade dinástica – têm dificuldade de não considerar essa atitude como a de um candidato a usurpador, mais do que a de alguém disposto a influir beneficamente sobre a opinião pública do país. É, portanto, dever dos monarquistas a recusa a essas tentativas de cindir a Família Imperial e a Causa Monárquica, hoje fonte inequívoca de esperança dos brasileiros de bem.
Notas
(1) A íntegra da matéria pode ser lida aqui: www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/a-familia-real-nao-tem-o-direito-de-dizer-quem-sera-o-rei-diz-dom-joao-de-orleans-e-braganca-94wq8z6uzcg5fohyilhcww1tf
(2) Basta mencionar, como exemplo, o notório posicionamento de Dom Pedro II e da Princesa Isabel, enquanto Regente, a aconselhar os sucessivos gabinetes imperiais no sentido da abolição da escravatura – obtida, por fim, em 1888, com o conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira como presidente do Conselho de Ministros.
(3) A legitimidade monárquica no Brasil. Artpress, 1988.
(4) Importantíssimo realçar a relevância dos casamentos principescos para a obtenção da paz em momentos delicados da história europeia. Citemos um exemplo emblemático: D. Filipa de Lancastre, princesa inglesa da Casa de Lancastre, casara-se em 1387, no Porto, com Dom João I, o Mestre de Avis, do que resultou a mais antiga aliança diplomática ainda em vigor: a Aliança Luso-Inglesa. (V. Crónica de el-rei João I, de Fernão Lopes).
(5) Faz-se, a propósito, de leitura indispensável o livro Utopia igualitária – aviltamento da dignidade humana, de Adolpho Lindenberg (Ambientes e Costumes, 2016).
(6) Teoria das Cortes Gerais. Impretipo, 1975.
(7) Dom Pedro Henrique – o condestável das saudades e da esperança. Artpress, 2006.
(8) A Constituição imperial pode ser lida integralmente aqui: ww.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm