Mário Ferreira dos Santos (1907-1968): um filósofo que ficou praticamente meio século em alto desconhecimento, em seu país de origem. Um homem com um gabarito e um cabedal intelectual de fazer a mais plena e pura inveja a qualquer um, com uma erudição cultural rara e um talento para a escrita didática que poucos possuem ou possuíram.
Mário Ferreira dos Santos é um daqueles exemplares que, em sua própria época, não causaram grandes mudanças ou influências no cenário intelectual, mas que só décadas depois (ou séculos, dependendo do caso) vereia-se todo o brilho e toda a importância magna de sua obra. Embora não esteja mal acompanhado – na própria filosofia podemos por ao lado de Mário F. dos Santos nomes como o do próprio Aristóteles, que teve seus escritos principais caídos no esquecimento por gerações; se fossemos buscar um exemplo na História da Música, na História dos grandes compositores, poderíamos por ao lado de Mário ninguém menos que Antônio Vivaldi, um sujeito que faleceu nos meados do século XVIII, mas que teve sua música ressuscitada apenas no início do século XX (!) –, é gritante a pouca influência que exerceu na segunda metade do século passado, no Brasil, e nos primeiros anos do século atual. Praticamente nenhuma de suas obras teve as republicações e reedições que mereciam, e tampouco os comentários e um estudo fino que deveriam ter. O pensamento de Mário Ferreira dos Santos ficou sepultado até o progresso da internet no Brasil ter bases firmes e um andamento vigoroso.
Foi a partir da internet que o maior divulgador da filosofia de Mário Ferreira dos Santos retirou a importância desse autor da cripta, foi com a voz de Olavo de Carvalho que o nome de Mário foi reverberado na cultura brasileira e o interesse em suas obras foi renascido com a amplitude que deveria ter.
O livro Filosofia e Cosmovisão (relançado pela É REALIZAÇÕES, em 2010) é uma prova latente da capacidade e do talento do autor. A obra em questão é uma introdução para a filosofia marioferreiriana, mas também pode ser caracterizada como uma introdução à Filosofia Geral (de fato, a primeira parte do livro possui esse exato nome), onde se pode ter um início dos problemas e das questões magnas da filosofia desde os tempos dos pré-socráticos até a filosofia da primeira metade do século XX – isto é, na perspectiva do autor enquanto compunha esses escritos, a abordagem ia até a sua contemporaneidade.
Não se trata de um calhamaço que abordará nomes poucos conhecidos da filosofia grega, como o de Antíoco de Ascalon, ou que vá tratar das escolas neoplatônicas na Inglaterra do século XVII. Os problemas principais e definidores para a filosofia é que ganham o foco, como as categorias, os primeiros princípios, a questão do ato e da potência, a experiência, o pensar, a razão, a intuição, a substância, a gnosiologia, a ontologia, a abstração, a psique humana, as ciências empíricas.
O autor aborda nomes como Immanuel Kant, Aristóteles, Platão, Descartes, Parmênides, Anaximandro, Heráclito, Sto. Tomás de Aquino, etc., nomes que irão traçar as principais questões para a filosofia, mas é importante ressaltar: para iniciantes totais na História da filosofia, a nomenclatura e o modo como as questões máximas são tratadas podem ser um empecilho. Um pouco de estudo na História da filosofia Antiga, medieval e Moderna pode ser requerido para entender a obra em questão, malgrado esteja escrito no prefácio – e está escrito algo bem verdadeiro – o fato de Filosofia e Cosmovisão ser o trabalho mais introdutório e de fácil leitura de seu autor. É preciso ter em mente que para aventureiros de primeiríssima viagem a introdução de Mário Ferreira para a filosofia pode ser bem custosa de ser apreendida – é importante ressaltar: na primeira parte do livro, onde os problemas introdutórios pela História da filosofia (embora não sejam apresentados de maneira cronológica) são dados, existem conceitos caros para o mínimo de entendimento da segunda parte. Nesta primeira aparte da obra, as correntes de pensamento, condensadas em como elas viam a possibilidade do conhecimento, como elas encaravam o sujeito e o objeto, enfim, como a realidade foi percebida e aprendida durante a História do pensamento humano.
Iniciando com sua grandiosa entrada, que, sem dúvidas, é melhor que seja mostrada na íntegra, sem rodeios ou resumos:
“Que diríamos de quem quisesse dar valor apenas aos fatos sensíveis e proclamasse, por exemplo, ‘basta a experiência dos meus sentidos’? E ainda acrescentasse: ‘O que meus olhos veem é a única verdade, e eles são a medida de toda a verdade’. Ou então: ‘Só o que ouço é para mim rigorosamente exato’. Seria o mesmo se os sentidos, ao se voltarem para o cérebro, dissessem: ‘Tuas generalizações, tuas coordenações, são puramente abstratas, meras lucubrações sem nenhuma realidade. Nós não precisamos de tuas reflexões sobre nossos atos; basta-nos apenas sentir e nada mais. O que tu fazes é obra morta, anquilosada, estática; um pobre fantasma criado por ti’.
Pois bem, as ciências especializadas são como os sentidos; são predominantemente empíricas, experimentais. Mas a nossa experiência não é apenas esta. A inteligência regula as nossas atividades, escolhe, seleciona, descobre relações que os sentidos não podem alcançar desde logo: mostra erros e ilusões que eles cometem e dos quais sofrem; corrige-nos, melhora-os, adapta-os, ensina-os a proceder com mais cuidado, incita-os a alcançar bases mais sólidas.
Assim é a filosofia”.
Em uma ressonância para com Aristóteles, o autor define a filosofia: uma composição não-produtiva e abstrata, guiada para o saber, para a Verdade, por amor a esta última. Uma episteme que busca se distanciar da doxa, em prol do saber verdadeiro. O berço de todas as ciências, de toda a teoria.
É a filosofia, como bem aponta a obra em questão, aquilo que indaga, o que procura e formula as questões sobre a realidade. Em seu esquadrinhar da questão filosófica, a razão, por exemplo, é definida como uma catalogação em gêneros diversos e constantes do que nos rodeia, sendo uma característica básica de toda a gnosiologia humana, assim como a intuição. Mário Ferreira dos Santos explica que o intuir é o perceber geral, não catalogando e categorizando as coisas, mas o perceber subjetivo e individual dos entes, da casualidade. O intuir está para além da razão, mas não é uma força contrária a ela. O conhecimento humano se baseará em certas relações entre a razão e a intuição.
Tendo seu início como uma cosmologia, a filosofia grega – o autor também admite a existência de uma filosofia oriental, bem mais apegada à magia do que questões racionais. Não ouso concordar com Mário Ferreira dos Santos nessa questão, porém também não tratarei dessa problemática nesta resenha – toca em algo importante: o mundo a nossa volta, o cosmos que observamos e que também fazemos parte.
Heráclito de Éfeso é quem observa a mudança constante no mundo que nos rodeia. “Não se pode entrar em um rio duas vezes”, observa Heráclito, mas essa constante mudança quebra o princípio da Identidade, algo que foi percebido por seu maior crítico: Parmênides de Eleia, mas este também radicaliza. Em vez de um relativismo extremado, Parmênides cai no absolutismo do ser. Já que o não-ser, para Parmênides, era impossível, apenas o ser era o real, não existindo espaço para a mudança, para o diverso. Tudo era Um, todo o cosmo consistia no Uno absoluto.
Com isso a noção de espaço, durante a filosofia, é apresentada. O espaço não existiria, segundo Parmênides, pois a distância entre os entes, assim como os próprios entes, no plural. Aristóteles é quem soluciona tal impasse. O filósofo de Estagira entende que os seres físicos tramitam entre o ato e a potência, entre o ser e o não-ser, sendo este não-ser um devir, e não um nada. Ato e potência serão essenciais para o restante da filosofia marioferreiriana.
Vejamos outros temas abordados na obra:
Com destaque para a questão do sujeito e do objeto – é a questão do eu e do não-eu, a interação existente entre algo para fora do sujeito observador e o que é observado (o objeto). Como não existem correntes que defendam a existência única do objeto, já que o objeto implica a existência do sujeito que não se identifica com ele, Mário Ferreira dos Santos separa da seguinte maneira: existem posições que defendem a existência tanto do sujeito como do objeto; existem posições que só defendem a existência do sujeito.
Com os empiristas (Francis Bacon e John Locke), o sujeito é uma tábula rasa, que sofre a ação dos objetos exteriores; com os racionalistas-aprioristas o sujeito é que cria o mundo exterior, não dependendo os objetos – entre estes existem os adeptos do silopsismo, onde o Eu é o criador absoluto do exterior e os moderados, que acreditam em características inatas que dão uma ênfase maior para o Eu, com os aspectos decisivos do conhecimento tendo dependências para com os conceitos inatos e universais de substância, causalidade, etc. –; a posição criticista de Kant estabelece categorias apriorísticas e conceituais para o conhecimento do objeto, com o sujeito e o objeto sem oposição, mas em complementação equivalente, onde a crítica concilia o aparente antagonismo. Kant, segundo o autor, concilia a posição empirista e a racionalista; a posição mística é aquela que é derivada da intuição imediata, para além dos fenômenos que podem ser captados com a razão, com uma visão interior para o transcendental.
Com isso o autor passa para a possibilidade do conhecimento humano. Como se opera o conhecimento epistemológico? Quais são as correntes filosóficas e como elas formulam ou solucionam essa problemática?
As filosofias dogmáticas sequer enxergam tal problema. Para elas, é natural que o conhecimento seja plenamente captado; o ceticismo sistemático (Pirro e Hume podem ser representantes desse ceticismo, mesmo que difiram de modo notório) sequer concebe qualquer possibilidade de conhecimento, o lógico combate o conhecimento metafísico e o metódico, malgrado pretenda atingir o verdadeiro, põe em dúvida tudo para atingir a Verdade; os subjetivistas e relativistas condicionam o conhecimento ao máximo, apelando par ao meio e para o sujeito que vive no meio, que relativiza tal conhecimento; os pragmáticos consideram a ação como o pilar da verdade, e a verdade estaria de acordo com as conveniências das ações dos Homens.
Veremos como o autor aborda o restante dos problemas magnos da Filosofia em uma segunda parte, porém é preciso dizer: Mário Ferreira é extremamente caro aos problemas do sujeito e do objeto, aos problemas do conhecimento. Retira da maioria das grandes correntes algo em seu proveito. Com isso, em Mário o próprio Aristóteles ressoa, pois assim como o Estagirita se aproveitou das Verdades do relativismo de Heráclito e do Absolutismo de Parmênides, Mário Ferreira se aproveita de tudo o que é bom, de tudo o que não é absurdo, dentre as grandes correntes e os grandes filósofos.